quarta-feira, 28 de setembro de 2016

“Que Horas ela volta?” é um recorte que retrata a relação hierárquica vivida entre as classes sociais



Escrito e dirigido por Anna Muylaert, o filme (lançado em 2015) mostrou-se uma verdadeira preciosidade do cinema nacional e certeiro em passar a mensagem na qual se propôs. Poderia escrever diversos posts sobre o aspecto técnico do filme. Porém, o que eu realmente desejo detalhar ao leitor é a contribuição que esta obra traz para o entendimento e reflexão dos embates contemporâneos que ocorrem entre as classes na sociedade brasileira (historicamente estabelecida). De todo modo, é importante dizer que cada corte de câmera é cuidadosamente pensado e tem algo a nos dizer. 

Ambientado praticamente em tempo integral na casa de uma família de classe alta que mora na capital paulista, o filme mostra a rotina da empregada doméstica e babá Val (interpretada pela Regina Casé), trazendo à tona questões conflitantes devido a sua condição social e as necessidades que isso impõe a ela. Vivendo uma rotina estafante de uma família que não é a sua para oferecer o mínimo de condições financeiras para sua filha Jéssica (Camila Mardila), que reside em Pernambuco, é parte frágil de uma relação ultrapassa os limites profissionais.

A posição de Val perante os patrões e sociedade é de uma mulher serviçal, uma relação pela qual os endinheirados “fazem um enorme favor” em emprega-la e oferecer uma chance aquele ser que não seria nada sem a “bondade” deles. As aspas dessa ironia são tão latentes que pode ser sentida quase que fisicamente pelo espectador. Ao menos foi assim comigo.

Mas o que está implícito ao papel de Val é o que o dinheiro não pode pagar. Com contato diário e próximo ao filho de sua patroa Bárbara (Karine Teles), a relação assume um caráter materno que supera muitas vezes o da própria mãe, ocupada nos seus afazeres profissionais sempre inadiáveis. Como responder a um filho a hora que a mãe vai voltar?
Sucessivas situações marcantes ocorrem com a vinda de sua filha para São Paulo. Val, a muito custo começa a quebrar os seus tabus, comuns entre muitos de nós. Ampliando esse exemplo ao social como um todo, quando há consciência ao proletário, há resistência.


Jéssica desafia as ordens pré-estabelecidas do curso de como tudo deve ser na visão patronal. Mostra que a Val deve sim prestar o seu serviço, mas que isso não deve impor a ela nenhum demérito e que ela pode sim comer na mesma mesa de qualquer um, pois riqueza material não faz ninguém superior. Prova que os filhos dos menos abastados podem sim conquistar por seus próprios méritos vagas nas principais universidades, frequentadas quase que integralmente por aqueles que puderam se preparar para estar lá e os levam a ocupa-las por desigualdade de condições (ou alguém viu a meritocracia por aqui?).

Provoca até mesmo o amor (que beira o bizarro!) de seu patrão Carlos (Lourenço Mutarelli), que “era tão rico que só tinha dinheiro” como é costumeiro dizer, e o medo de seu filho por ser simplesmente uma mulher de opiniões próprias, segura de si, que rejeita a submissão.  

Sistematicamente as classes trabalhadoras nas quais a Val se insere são tratadas como ela, independentes da profissão. Educados a agradecer aos céus pelo fato de ter patronos que nos oferecem emprego, nunca se atendando que somos capazes e temos méritos próprios por aquilo que conquistamos. Não existem estímulos para questionar, pois não consideram o fato de que temos esse direito. O dever de cumprir ordens nos aliena de pensar o trabalho. Como é de costume nas redes sociais abraçar uma determinada causa, o sentimento que predomina ao final do filme é de que #SomosTodosVal.



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